Tiro

  • Alexandre Coxo
Publicidade, estigmas profissionais ou ideais românticos são chavões que caracterizam a sociedade contemporânea. A evolução acontece na ausência de um espaço para o “pessoal”, há uma recusa do silêncio. Contudo esta dimensão psicótica é contraposta pelo desenvolvimento de actividades de lazer. Algumas caracterizam-se pelo arremesso de objectos como o lançamento do dardo e do disco, o tiro ao alvo, o jogo do fito ou o berlinde.

O imaginário bélico está enraizado na nossa cultura. Na infância somos incentivados a dar o tiro. Constroem-se brinquedos, desenvolvem-se habilidades. A destruição não é considerada, não importa o alvo. A fantasia é realidade num momento de prazer alienado de tudo o resto.

Um ciclo vicioso convida à criação de um mundo paralelo. Um jeito gradual leva à perda de contacto com a realidade. Aqui surge o tiro enquanto lazer, desenvolvido em espaços preparados para a sua prática. Numa natureza idealizada constroem-se momentos sem espectativa.

Às mascaras tribais são pinturas mas Picasso descreve-as como armas: “Eram armas, Para ajudar as pessoas a deixarem de ser dominadas pelos espíritos, para serem independentes”1. Arma aqui é significado de ferramenta que permite ir além do que o corpo alcança. Na mesma entrevista: “Percebi porque era pintor. Sozinho naquele museu horrível, as máscaras, as bonecas dos índios vermelhos, os manequins empoeirados”1. Picasso sentiu-se atingido. Relembro que os primitivistas valorizam o que de mais visceral e instintivo existe no ser humano. Desta forma o bélico é projecção do mais profundo inconsciente e encontra-se ligado à expressão artística.

Esta relação tiro/pintura é fundamental para mim, na medida em que permitem estabelecer um código, um tanto ou quanto poético, de compreensão e acção. Com consciência deste processo, o presente trabalho debruça-se sobre o valor do conhecimento, da realidade ou consciência do real. A actividade referente visual é o tiro, pelos valores referidos, a pintura hiper-realista impõe-se como meio que permite condensar e fazer coabitar as duas dimensões.

No tiro, a decisão do disparo é um instante que condensa em si uma história de pensamentos. A necessidade de captar esta dimensão ínfima de tempo coloca um entrave à pintura. Esta, por condensar visualmente uma experiencia arrastada no tempo, não se pode realizar a partir do real. O fazer não permite congelar o instante, nem os pedaços de memória permitem compor um puzzle que considere coerente.

Desta forma, a fotografia e o vídeo propõem-se como ferramentas para fixar e compilar a informação necessária ao exercício da pintura. A pintura é o tempo para que remete, o tempo que exigiu e o tempo que a observa. Tal como “Uma representação mental é elaborada de um modo quase alucinatório e parece pedir emprestadas as suas características à visão” (Joly, 1994), construir uma pintura envolve um preambular de análise e pesquisa que deve ser farta em registo.